23 de outubro de 2009

A Noção de Tempo na Antiguidade Judaica




Partindo do título deste capítulo [Davi e o Tempo de Deus em sua Vida], não há como não tratar do assunto “tempo” (hb. yôm; gr. aōn). Do ponto de vista teológico, toda discussão que envolve a questão “tempo” é muito importante, sobretudo quando se sabe que há abundantes menções da expressão em toda a Bíblia, principalmente relacionada ao cumprimento de determinadas profecias (Jr 31.1; 33.15; 46.21; 50.4,27,31, etc.). É o que se conhece como “tempo de Deus”, ou seja, o momento em que o Eterno realizará o cumprimento de determinada promessa. Em sentido pleno, todo o tempo pertence a Deus, pois Ele não apenas o precede (Is 43.13; Dn 7.9), transcende (Sl 90.4), mas também o criou (Gn 1) e domina (Sl 74.16), entretanto, quando se fala em “tempo de Deus, o que se quer assinalar é a sua intervenção direta em ocasiões específicas (principalmente as vaticinadas ou preditas), as quais demonstram de maneira explícita sua soberania. Poderia, com razão, se perguntar: “Há algum momento, por mais fortuito que seja, que escapa à sua soberania?” Evidentemente que não! Porém, existem situações em que sua ação é mais claramente demonstrada.1 Até porque, para o judeu, “o tempo e a história eram inseparavelmente vinculados”, em outras palavras, o “tempo tinha interesse para ele tão-somente à medida que era qualificado por um evento específico”.2 O judeu sabia, pelas lições da própria história, que o Eterno, no momento dEle, entraria com providência e agiria mudando a configuração de qualquer quadro (tanto no sentido positivo quanto negativo, humanamente falando).



Uma das características desse período que estamos atravessando é o desapego a tudo que diz respeito ao passado. A impressão é que o mundo começou com a existência individual de cada pessoa, de forma que “fazemos nosso próprio destino”, traçamos o nosso caminho e nada que aconteceu antes pode nos afetar. Além de presunçosa, tal postura é estúpida. Por isso, acredito que é preciso refletir que a noção de tempo ― com a linearidade que conhecemos atualmente ―, não é algo universal e nem mesmo comum. A despeito de a discussão acerca do tempo parecer banal, e a própria afirmação de que ele é linear soar como extremamente óbvia para nós, é preciso saber que tal herança histórica é o que o historiador Thomas Cahill chama de “dádiva dos judeus” para nós ocidentais:Para os antigos, o futuro seria sempre uma reprise do passado, assim como o passado era simplesmente uma reprise terrena do drama celeste: “A história se repete” ― isto é, a falsa história que não é história, mas mito. Para os judeus, a história também está repleta de lições de moral. Mas a moral não é que a história se repete, e sim que há sempre algo novo: um processo que se desenrola ao longo do tempo, cuja direção e fim não podemos saber, a menos que Deus nos forneça uma dica do que acontecerá. O futuro não será o que aconteceu antes; na verdade, a única realidade do futuro é ainda não ter acontecido. É incognoscível; e o que será não pode ser descoberto por augúrios ― pela interpretação das estrelas ou exame de entranhas. [...] Por isso o conceito de futuro ― pela primeira vez ― oferece a promessa, em vez da mesma coisa de sempre. Não estamos condenados, não estamos presos a um destino predeterminado; somos livres. Se qualquer coisa pode acontecer, somos realmente liberados ― tão liberados quanto os escravos israelitas quando cruzaram o mar dos Caniços.3A própria “invenção” mitológica no mundo antigo era uma forma de assimilação do fluxo do tempo e uma maneira de manter viva a ideia de ter o antepassado sempre presente ou de “volta” à família. Nada era histórico no sentido de se construir, mas místico, na pior acepção possível da palavra. Nesse contexto, os seres humanos eram meras marionetes no drama existencial, e os deuses, estes sim, responsáveis absolutos por todas as realizações. O tempo e o próprio universo não eram mais que uma imensa roda etérea, girando sem parar, tendo que acontecer novamente aquilo que já havia sido. O que ocorre é que a visão de mundo judaico-cristã tornou-se tão comum para nós, e achamos tão “impossível nos livrarmos dela ― até mesmo para um breve experimento ―, que é agora a visão cósmica de todos os outros povos que nos parece exótica e estranha”.4 A dissertação de Cahill não é simplesmente uma particularidade de sua pena ou seu modo arguto de interpretar o mundo antigo, mas o resultado de pesquisas históricas convergentes, as quais apontam para a mesma direção:Os formuladores de mito no antigo Oriente Médio não concebiam o tempo em termos de uma sequência horizontal e linear de acontecimentos, que ia de um princípio histórico até uma consumação final de todas as coisas. Em vez disso, consideravam o tempo como cíclico, com a reestruturação e revitalização anuais do universo. Seus mitos da criação eram recitados em festas anuais de ano novo como palavras mágicas que deviam acompanhar um ritual de magia a fim de reconcretizar a cosmologia original, a saber, a passagem do caos para o cosmos. No pensamento mitopoéico o tempo não tem nenhuma significação nem a história tem sentido algum.5Os historiadores destacam que “Gênesis 1 deixa perceber uma noção totalmente diferente de tempo”, isto é, distinta da dos demais povos, pois enquanto aqueles vivem em um “mundo repetitivo”, para os judeus “o tempo é concebido como linear, e os acontecimentos vão ocorrendo sucessivamente dentro dele”, em uma palavra, “do ponto de vista bíblico o comportamento do homem hoje determina sua condição no futuro”.6 Como todos sabemos, o primeiro livro da Bíblia é parte do Pentateuco, escrito por Moisés. Apesar de o material escrito ter aparecido muito tempo depois de acontecerem os fatos ali narrados, é imprescindível atentar para a verdade de que após a Queda e suas consequências, a humanidade perde-se em noções totalmente avessas e ilógicas acerca do tempo. O entendimento da noção linear de tempo será inserida no mundo antigo a partir da revelação ou epifania.7 Thomas Cahill chega a afirmar que esse rompimento do pensamento judaico acerca do tempo no mundo antigo (o que modernamente conhecemos como “recorrência eterna”) é tão significativo e inaugura uma forma tão diferente e nova de concepção “a ponto de se poder dizer com certa justiça que [...] foi a única idéia nova que os seres humanos já tiveram”.8 Mas o que mudou essa visão, e de tal maneira, que ela agora pareça completamente alienígena para nós? O mesmo Cahill responde:Esse maravilhoso e novo sentido de tempo não se abateu sobre os israelitas de repente. O que começou na convocação de Avraão para abandonar sua terra e seu povo e partir para um destino ignorado germinou na vocação de Moshe para tirar seu povo escravizado da atmosfera assombrada por um deus do Egito cíclico, onde tudo que seria já tinha sido e todas as perguntas importantes tinham sido respondidas, já tinham sido transformadas em pedra, como as estátuas, imóveis e de olhar fixo, do faraó. Nessas duas viagens, fomos do pessoal (o destino de Avraão) ao coletivo (o destino do Povo de Israel). Fomos de um deus padroeiro, um deus doméstico que se carrega de sorte, a Yhwh, o Deus dos deuses, cujo poder é superior ao maior poder a que a Terra pode apelar. Juntas, essas duas grandes fugas nos oferecem um senso completamente novo do passado e do futuro ― o passado como constituindo o presente, o futuro como realmente não conhecido.9 Depreende-se da argumentação de Cahill que o tempo visto como possibilidade é uma dádiva dos judeus para o mundo ocidental. Tal concepção, por conseguinte, sugere que o tempo não é uma gigantesca roda etérea girando sem parar, mas teve início e caminha para um “fim”. Tal fim ― no sentido aqui argumentado ― não é o que comumente se designa como o “fim do mundo” ou como o fim da existência do indivíduo, e sim o “tempo de Deus”, o chegar ao ponto e estágio estipulados pelo Eterno. E onde tudo isso ocorre? No “tempo” e no decurso do fluxo chamado “história”. Como afirma Oscar Cullmann: “É sobre uma linha reta traçada no âmbito do tempo ordinário que Deus se revela e é de lá que Ele dirige não somente a história em sua totalidade, mas ainda todos os eventos da natureza: não há lugar aqui para as especulações sobre Deus que se coloquem como independentes do tempo e da história”. Tendo preliminarmente entendido essa verdade, o mesmo autor ainda defende que “os atos de Deus não se revelam ao homem em nenhuma outra parte mais concretamente do que na história que, do ponto de vista teológico, representa, em sua essência íntima, as relações que existem entre Deus e os homens”.10 A diferença é significativa e substancial, pois enquanto os outros povos antigos não atribuíam nenhum sentido à história e a noção de tempo era extremamente precária, o judeu a entende como a arena da revelação e intervenção divinas. Decorre desse raciocínio, que é preciso fazer distinção ― teológica e biblicamente falando ―, entre duas noções principais de tempo (ainda que a discussão migre agora do hebraico para o grego, ou seja, vá do Antigo Testamento para o Novo Testamento, ela é oportuna e pertinente à argumentação desenvolvida até aqui):As duas noções que designam com o máximo de clareza essa concepção são aquelas que exprimem, em geral, os termos καιρός (kairos, kairoi) e αìών (aiôn, aiôns). Não é fácil dar uma tradução adequada aos diversos termos que se referem ao tempo. Eles revestem em cada passagem um sentido teológico determinado pelo contexto. Por outro lado, os dicionários nos ensinam que eles podem ser igualmente utilizados no Novo Testamento sem significação teológica especial. O que caracteriza o emprego de kairos é que ele designa no tempo um momento determinado por seu conteúdo, enquanto que aiôn designa uma duração, um espaço de tempo, limitado ou não.11É preciso considerar que Oscar Cullmann está tratando da história da salvação12 e sua análise se concentra especificamente no Novo Testamento. Entretanto, em virtude da utilização, muitas vezes indiscriminada, do termo kairos em mensagens motivacionais e de autoajuda, vale a pena destacar a exposição de Cullmann acerca do seu uso:Kairos, no uso profano, significa a ocasião particularmente propícia para uma empreita, o momento do qual se fala há muito tempo sem conhecer sua época certa, a data que corresponde ao que se chama, por exemplo, na língua moderna “o dia D”. É geralmente em virtude de considerações humanas que um momento nos parece particularmente propício para a execução deste ou daquele projeto, tornando-se um kairos. É neste sentido profano que Félix diz ao apóstolo Paulo (At 24.25): “Quando o momento chegar, eu te chamarei”.No Novo Testamento o uso deste termo, aplicado à história da salvação, permanece o mesmo, porém, com a seguinte reserva: este não se refere a estimativas humanas, é um decreto divino que faz desta ou daquela data um kairos, e isto em vista da realização do plano divino da salvação. Isto se dá porque este plano, em sua realização, está ligado aos kairoi, aos momentos escolhidos por Deus, que é uma história da salvação.13Outra coisa muito importante que se aprende da visão judaica acerca do tempo é que o “israelita preparava-se para um fim próximo do tempo presente, e esperava por uma nova era, concebida ― a não ser em exceções [...] ― em termos temporais”,14 em outras palavras, não havia simplesmente uma esperança futurística supratemporal, ou seja, além da região temporal ou do nosso espaço-tempo, mas a crença e confiança de que Deus interviria na realidade humana, na história dos homens, seres falíveis, finitos e criados. Um Deus que se dá ao luxo de vir em busca de seus servos não é algo comum na antiguidade. Entretanto, esse é o Deus do judaísmo e do cristianismo: um Ser Todo-poderoso que desde a revelação ou epifania da experiência de Abraão até a encarnação de Jesus Cristo, a revelação total do “mistério que esteve oculto desde todos os séculos e em todas as gerações e que, agora, foi manifesto aos seus santos” (Cl 1.26), alcança os homens através da história. Este Deus, seguramente, pode ser chamado de o “Deus das eleições soberanas”.


NOTAS

[1] Oscar Cullmann, por exemplo, diz que não “são todas as partes da linha contínua do tempo que formam a história da salvação propriamente dita, mas, antes, os kairoi, os pontos isolados na totalidade do curso do tempo” (Cristo e o tempo. Tempo e História no Cristianismo Primitivo. 2.ed. São Paulo: Custom, 2003, p. 78).[2] BROW, Colin & COENEN, Lothar. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 2.467.[3] CAHILL, Thomas. A dádiva dos judeus. Como uma tribo do deserto moldou nosso modo de pensar. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 143.[4] Ibid., p. 18.[5] ARCHER, Gleason L.; HARRIS, R. Laird; WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. 1.ed. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 605.[6] Ibid., p. 605.[7] Giovanni Reale e Dario Antiseri, em sua História da Filosofia, afirmam que os próprios gregos (e também os estóicos) eram a-históricos e a ideia de progresso lhes era, no mínimo, estranha. Isso apenas reforça o fato de que o rompimento com a visão cíclica não é produto de reflexão humana, mas que a mudança veio através da revelação ou epifania. Os autores esclarecem que a “concepção de história expressa na mensagem bíblica, ao contrário, não é cíclica, mas retilínea: no transcorrer do tempo, verificam-se eventos decisivos e irrepetíveis, que são como que etapas que destacam o seu sentido. O fim dos tempos é também o fim para o qual eles foram criados: é o Juízo universal e o advento do Reino de Deus em sua plenitude. E assim a história, que vai da Criação à queda, da Aliança ao tempo de espera do Messias, da vinda de Cristo ao Juízo Final, adquire um sentido, tanto no seu conjunto como em suas diversas fases” (10.ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 393).[8] CAHILL, Thomas. A dádiva dos judeus. Como uma tribo do deserto moldou nosso modo de pensar. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 18.[9] Ibid., p. 144.[10] CULMANN, Oscar. Cristo e o tempo. Tempo e História no Cristianismo Primitivo. 2.ed. São Paulo: Custom, 2003, p. 62.[11] Ibid., p. 77.[12] No capítulo 12, esta questão será retomada, pois a Aliança Davídica, e consequentemente o seu reinado e sucessão, constituí-se em importante kairoi dentro de toda a economia divina e, especificamente, da história da salvação.[13] Ibid., p. 77,78.[14] BROW, Colin; COENEN, Lothar. Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. 2.ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 2.462.



CARVALHO, César Moisés, et al.
Davi. As vitórias e as derrotas de um homem de Deus. 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, pp.68-74.
Postado por Pastor César Moisés às
07:43
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